Enquanto o mundo discute clima e mercado de carbono, a Amazônia segue no centro de disputas — entre promessas de progresso e riscos de repetir velhos ciclos. Neste artigo, Victoria Alves analisa por que a bioeconomia precisa nascer da floresta e de seus povos para ser realmente regenerativa e soberana.
🕒 Tempo médio de leitura: 5 minutos | 📘 Autora: Victoria Alves, fundadora da NaqīKarbon.
Bioeconomia na Amazônia: entre promessas de progresso e o risco de repetir velhos ciclos
Recentemente, a matéria publicada por O Globo o trouxe à tona um tema que, na NaqīKarbon, consideramos essencial: o avanço da bioeconomia na Amazônia, impulsionado pela fusão entre tecnologia e saberes tradicionais. A reportagem destaca o potencial de riqueza e inovação dessa união — e, de fato, ele existe. Mas tão importante quanto celebrar esse potencial é parar para pensar: a quem essa riqueza serve? E em que condições ela é gerada?
A Amazônia sempre despertou o interesse de atores globais. Há exatos 100 anos, o jornal já noticiava o possível interesse de Henry Ford na extração de látex na região. Um século depois, seguimos discutindo os mesmos dilemas: como transformar o valor da floresta em benefícios reais para quem a habita, sem entregar nossa soberania e nossos saberes às lógicas extrativistas globais?
Um exemplo recente chama atenção: a compra de 400 mil acres de floresta amazônica por um empresário sueco, com a justificativa de conservação. Ainda que iniciativas privadas possam ter intenções positivas, é preciso questionar — quem controla, de fato, o destino dessas terras? E qual o papel das comunidades locais nessa equação? Sem salvaguardas claras, movimentos como esse podem abrir brechas para a perda de soberania territorial e a centralização do poder sobre recursos estratégicos em mãos externas.
Pagamento por Créditos de Carbono: potencial e riscos
A dimensão econômica da floresta em pé ganha contornos concretos com estudos recentes. Pesquisas do Climate Policy Initiative (PUC-Rio) e Amazônia 2030 projetam um cenário radical: se o carbono capturado e estocado pela Amazônia fosse valorado — mesmo a um preço modesto de US$ 20 por tonelada (fração dos US$ 90 do mercado europeu) — o bioma deixaria de ser um emissor líquido e se tornaria um gigantesco sumidouro de carbono.
O que isso significa na prática?
- Um fluxo financeiro transformador: geraria até US$ 320 bilhões em 30 anos para o Brasil — recursos capazes de compensar perdas econômicas em áreas hoje dominadas por atividades predatórias;
- Impacto climático tangível: capturaria até 16 gigatoneladas de CO₂ e evitaria a emissão de até 32 gigatoneladas (equivalente às emissões globais atuais anuais);
- Mecanismo técnico viável: baseia-se em modelos sofisticados que mapeiam a heterogeneidade territorial (pecuária, regeneração, uso do solo), mostrando que incentivos financeiros bem desenhados podem, teoricamente, inverter o ciclo destrutivo para um ciclo regenerativo.
Este potencial é inegável e estratégico para o país. Mas os números são só o começo da história. A pergunta central permanece: como garantir que esse mecanismo sirva à floresta e a seus povos, e não repita distorções do passado?
O que precisamos vigiar de perto
Quando grandes corporações estrangeiras entram no jogo, é preciso cautela. Nem toda parceria é sinônimo de colaboração justa. Muitas vezes, a tecnologia chega junto com contratos desiguais, patentes questionáveis e práticas que marginalizam quem deveria ser protagonista do processo. Afinal:- Quem controla o conhecimento? Se os saberes tradicionais forem apropriados sem consentimento e compensação justa, isso se configura como biopirataria;
- Quem lucra com a floresta? Se a cadeia de valor continuar concentrada fora do país, estaremos apenas repetindo o velho modelo colonial com uma nova embalagem verde;
- Quem define o que é sustentável? Muitas certificações ignoram aspectos sociais, culturais e espirituais das comunidades locais. Sustentabilidade sem justiça é insuficiente.
O risco da destruição dos saberes — e da própria bioeconomia
Um dos maiores perigos da entrada desordenada de grandes corporações na bioeconomia amazônica é o apagamento silencioso dos saberes tradicionais. Escalas industriais, que visam eficiência e padronização, muitas vezes destroem modos de vida únicos, que são justamente a base da bioeconomia verdadeira: aquela que respeita os ciclos naturais, a diversidade cultural e a autonomia das comunidades.
Quando uma empresa externa decide quais conhecimentos importam — e quais não — ela rompe com o princípio fundamental da diversidade epistemológica. Não existe um saber mais importante do que o outro. O conhecimento ancestral de manejo da floresta, transmitido oralmente por gerações, é tão valioso quanto qualquer tecnologia de ponta.
Esse tipo de imposição — ainda que velada — pode corromper práticas milenares, gerar conflitos internos e fazer com que jovens deixem de valorizar suas próprias raízes. O resultado? A centralização dos saberes, o esvaziamento das culturas locais e a descaracterização da própria bioeconomia, que passa a ser apenas mais uma engrenagem da lógica extrativista global.
Cada comunidade amazônica sabe gerir seu território de maneira sustentável. São esses saberes — diversos, vivos e interdependentes — que sustentam uma floresta em pé. Tirar isso das mãos dos povos originários e tradicionais é abrir caminho para a destruição disfarçada de progresso.
Pesquisa brasileira: o que o estudo da FAPESP nos ensina sobre o futuro da bioeconomia na Amazônia
O estudo coordenado pela professora e pesquisadora Vanessa Cuzziol Pinsky (Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo), com apoio da FAPESP, oferece um marco valioso para repensar a construção da bioeconomia na Amazônia. Longe de propor soluções técnicas desconectadas da realidade territorial, o trabalho defende que a bioeconomia precisa nascer da floresta e de seus povos, e não ser simplesmente aplicada sobre ela.
A pesquisa destaca três pontos centrais:
1. Sociobiodiversidade como fundamento, não como apêndice
A floresta não é apenas fornecedora de insumos. Ela é um sistema complexo, vivo, moldado e gerido por comunidades tradicionais ao longo de séculos. Uma bioeconomia verdadeira precisa respeitar essa teia de interdependências, e não reduzi-la a uma nova matriz extrativa.
2. Diálogo entre saberes como pilar do desenvolvimento
O estudo rejeita a hierarquização entre conhecimento científico e saber tradicional. Em vez disso, propõe uma epistemologia plural, onde ciência, cultura e vivência coexistem como forças construtivas. Isso confronta diretamente a lógica dominante, na qual a inovação é medida apenas por produtividade e escalabilidade.
3. Governança adaptada à complexidade amazônica
A Amazônia não é homogênea. As soluções devem ser moldadas a partir da diversidade cultural, ecológica e organizacional de cada território. O estudo critica a tentativa de replicar modelos prontos, muitas vezes pensados fora da floresta, que ignoram a autonomia e o tempo das comunidades.
A partir desses fundamentos, o estudo nos convida a refletir: qual bioeconomia queremos construir? Uma que sirva aos interesses globais, ou uma que regenere territórios e respeite vidas?
É hora de repensar as prioridades.
Até que ponto vale a pena ceder nossos saberes tradicionais para o benefício extrativista de grandes corporações estrangeiras?
Será que não devemos nos unir, como Brasil, e explorar com responsabilidade e autonomia o nosso próprio potencial regenerativo?
A verdadeira inovação não está apenas na tecnologia, mas na coragem de romper com velhas estruturas de poder e construir novas alianças, baseadas na equidade, no consentimento e no bem comum.
Na NaqīKarbon, acreditamos em uma bioeconomia ética, regenerativa e soberana. Que respeita os territórios, escuta as comunidades e reconhece que o carbono pode ser um ativo, mas a dignidade não é negociável.
🌱 Fica o convite para refletir — e agir.
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